“Quero a utopia, quero tudo e mais;
Quero a felicidade nos olhos de um pai;
Quero a alegria muita gente feliz,
Quero que a justiça reine em meu país.
Quero a liberdade, quero o vinho e o pão;
Quero ser amizade, quero amor, prazer;
Quero nossa cidade sempre ensolarada,
Os meninos e o povo no poder, eu quero ver.
In: Coração Civil – de Milton Nascimento
A palavra “utopia” tem origem grega e é formada pelo u (prefixo de negação) e topos (lugar), representando, assim, o ‘não-lugar’ ou ‘o lugar que não existe’. O termo foi cunhado pelo humanista inglês Thomas More que, em 1516, chamou sua história de uma imaginária viagem até uma ilha idealmente governada chamada Utopia. HELOISA LIMA – O sentido do ser
Esta Utopia apresentava uma realidade exemplar, justa e sem falhas. No livro, ela resultava em um sistema político ideal, uma sociedade perfeita com indivíduos bons que criavam e viviam em uma comunidade igualitária, harmoniosa e feliz. Diante da ameaça de censura política e religiosa, o autor resolveu colocar a ação em um mundo fictício, na desconhecida ilha Utopia, onde a liberdade era o bem mais precioso a ser resguardado.
E o que é liberdade para mim?
Primeiro, é uma bela palavra que emociona. Porque sempre penso que todos deveriam ter a liberdade de pensar, de escolher, de amar e de percorrer todas estas possibilidades tão fantásticas.
Assim, me entristece ver que para que pouquíssimos sejam “felizes”, uma esmagadora maioria seja alijada de uma vida mais plena, feliz e ‘utópica’.
Muitos filósofos já escreveram sobre a liberdade da mesma forma como falamos dela – a de fazer o que gostamos, de trabalhar naquilo que apreciamos, de escolher o homem ou a mulher com a qual queremos nos relacionar, de decidir em paz entre ler um livro, comprar uma bicicleta ou casar.
Se fôssemos verdadeiramente livres, o que faríamos com essa liberdade? Certamente a usaríamos para nos expressarmos, nos relacionarmos e para fazermos o que honestamente desejamos. Sem subjugar ninguém e sem mostrar submissão a quem quer que fosse.
“Ser o que se quer“. A frase é curta, mas traduz uma perspectiva difícil. A liberdade deveria ser a maior prerrogativa de todo ser independente e que tivesse vontade de superar seus obstáculos.
No mundo criado por Georges Orwell, no sempre tão atual livro 1984, as pessoas são condicionadas a pensar que “a liberdade é escravidão“. Como agora, em pleno século XXI, ainda o são.
No entanto, sem a autoridade sábia e benevolente de uma verdadeira e solidária comunidade, a ideia de liberdade estará sempre baseada nos dogmas de uma determinada classe social, naquilo que a família ‘crê’, nas doutrinas religiosas, nos programas de televisão, nas exigências do mercado de trabalho ou no projeto político e sombrio do momento. Ou seja: em tudo aquilo que não inclua uma coletividade desinteressada.
E foi pensando em todas estas questões que me vi inspirada a contar a história de uma comunidade que há tempos conheci: Užupis.
Lá nos idos de 1995, um grupo de artistas e intelectuais residentes da cidade de Vilnius, capital da Lituânia, construiu e levantou uma estátua de Frank Zappa. Dois anos depois, no ‘dia dos insetos’ – primeiro de abril de 1997 – o bairro boêmio da cidade se declarou uma República Independente, contando, naquela altura, com um ‘exército’ de 17 homens.
Pouco depois, foram criadas quatro bandeiras nacionais (uma para cada estação do ano) assim como elaborada uma constituição que logo mais explicarei.
Passados mais de vinte anos, a ‘república’ ainda não foi invadida e permanece como um glorioso hino à liberdade.
O nome Užupis quer dizer “do outro lado do rio” que, no caso, é o Rio Vilnia, o mesmo que deu nome à Vilnius.
Esta área por muito tempo ficou isolada do restante da cidade por conta deste rio que formava uma divisória natural. Até que, no século XVI, alguns moradores da cidade resolveram construir duas pontes e ali passaram a viver.
Durante muitos anos a região foi povoada por judeus que foram perseguidos em tempos de guerras e mortos durante a ocupação nazista. Depois de alguns anos, passou a ser habitada por marginais, mendigos, desabrigados em geral, prostitutas e, posteriormente, também por artistas e boêmios.
Até março de 1990 tratava-se de um território absolutamente abandonado. Logo depois, essas mesmas pessoas revitalizaram todo aquele espaço pintando paredes, criando e fixando esculturas modernas, promovendo encontros culturais e musicais, dentre outras atividades artísticas. E tudo isso se desenrolou sem nenhum tipo de interferência política, justamente por tratar-se de uma zona totalmente negligenciada pela administração local.
Naquela altura, alguns artistas escolheram o trabalho de Frank Zappa (cantor, guitarrista e produtor da vanguarda norte-americana) como representante da “Republika” e começaram a coletar assinaturas para sua fundação. Apesar da total irrelevância de Zappa para a Lituânia, as pessoas aceitaram a ideia e deram uma enorme demonstração de apoio que deixou as autoridades muito perplexas.
E foi assim que, em 1997, Užupis declarou a sua independência.
Inicialmente levada como uma brincadeira, a ação foi ficando séria – o que levou à eleição de um ‘presidente’, à criação de uma moeda própria, uma bandeira e um hino nacional. Hoje, conta com representantes em vários países do mundo (incluindo o Brasil). Atualmente, além de residências, bares, restaurantes e lojas, possui feiras e exposições de arte ao ar livre.
A história de Užupis é um conto bizarro e, ao mesmo tempo, estranhamente encorajador acerca do que pode acontecer quando um grupo de libertadores encontra um espaço para edificar seus projetos.
Perguntei a um artista local se a concepção de Užupis inicialmente era a de um espaço, um estado ou um estilo de vida.
“Tentamos ainda perseguir uma certa utopia“, explicou. “Reconhecendo que a implementação de todas as utopias anteriores foi uma experiência miserável, não buscamos mudar o mundo, mas simplesmente torná-lo mais agradável. Queremos criar um pequeno país onde possamos ser bons. Onde se pode aposentar-se e desaparecer. ‘Escapar’, em algum momento da vida. Uma vez passada a ponte sobre o rio, encontramo-nos em segurança no nosso país mítico. Se todos nós somos uma espécie de exilados, então, em certo sentido, Užupis é uma metáfora.“
“O espírito de Zappa nos persuadiu a declarar a independência do resto de Vilnius“, completou.
Sua constituição (traduzida em diversas línguas) é muito bonita e feliz para não ser compartilhada. Veja:
1. Homens e Mulheres têm o direito de viver nas margens do rio Vilnia e o rio Vilnia tem o direito de correr por entre todos eles.
2. Homens e Mulheres têm direito à água quente, ao aquecimento no inverno e a um telhado.
3. Homens e Mulheres têm o direito de morrer, não sendo, no entanto, uma obrigação.
4. Homens e Mulheres têm o direito de cometer erros.
5. Homens e Mulheres têm o direito de ser únicos.
6. Homens e Mulheres têm o direito de amar.
7. Homens e Mulheres têm o direito de não ser amados, mas não necessariamente.
8. Homens e Mulheres têm o direito de ser medíocres e desconhecidos.
9. Homens e Mulheres têm o direito de caminhar lentamente.
10. Homens e Mulheres têm o direito de amar e cuidar de um gato.
11. Homens e Mulheres têm o direito de cuidar de um cão até que um deles morra.
12. Um cão tem o direito de ser cão.
13. Um gato não é obrigado a amar o seu dono, mas deve ajudar em tempos de necessidade.
14. Algumas vezes, Homens e Mulheres, têm o direito de não ter consciência de seus deveres.
15. Homens e Mulheres têm o direito de estar em dúvida, mas isso não é uma obrigação.
16. Homens e Mulheres têm o direito de serem felizes.
17. Homens e Mulheres têm o direito de serem infelizes.
18. Homens e Mulheres têm o direito de ficar em silêncio.
19. Homens e Mulheres têm o direito de ter fé.
20. Ninguém tem o direito à violência.
21. Homens e Mulheres têm o direito de apreciar a sua insignificância.
22. Ninguém tem o direito de ter desígnios sobre a eternidade.
23. Homens e Mulheres têm o direito de compreender tudo.
24. Homens e Mulheres têm o direito de não compreender nada.
25. Homens e Mulheres têm o direito de ter qualquer nacionalidade.
26. Homens e Mulheres têm o direito de celebrar ou não celebrar o seu aniversário.
27. Homens e Mulheres devem lembrar-se do seu nome.
28. Homens e Mulheres podem partilhar o que possuem.
29. Ninguém pode partilhar o que não possui.
30. Homens e Mulheres têm o direito de ter irmãos, irmãs e pais.
31. Homens e Mulheres podem ser independentes.
32. Cada um é responsável pela sua liberdade.
33. Homens e Mulheres têm o direito de chorar.
34. Homens e Mulheres têm o direito de ser mal interpretados.
35. Ninguém tem o direito de culpar outra pessoa.
36. Homens e Mulheres têm o direito de ser um indivíduo.
37. Homens e Mulheres têm o direito de não ter direitos.
38. Homens e Mulheres têm o direito de não ter medo.
39. Não se anulem;
40. Não retruquem;
41. Não se rendam.
Infelizmente, Frank Zappa morreu dois anos antes de ter a chance de ver, no centro da cidade antiga de Vilnius, a estátua em sua homenagem erguida.
Mas nós todos continuamos vivos para refletirmos sobre este peculiar exemplo. Possível, desde que construído a partir do que genuinamente temos. E junto a quem verdadeiramente confiamos e amamos.
Afinal, o mundo é muito desconfortável para a maioria das pessoas – ainda que haja espaço e condições para todos viverem em equilíbrio.
Todos sonham com um lugar onde possam viver em paz, onde se possa manter o sentimento de harmonia, que é a unidade entre homens e alegria.
Então, deve haver um pequeno pedaço de terra onde a vida, desta forma, seja possível, não?
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